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Luta contra o vírus

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Em 2021, enquanto o planeta Terra é assolado, há dois anos, pela pandemia de covid-19, que parece não ter fim, o mundo também relembra os 40 anos de uma outra pandemia, que embora esquecida por muitos, ainda é considerada ativa pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Assim como aconteceu em 2019, em 1981 o mundo se deparou com uma doença misteriosa e mortal. Antes de provocar o óbito, porém, a enfermidade fazia o paciente definhar a olhos vistos. O emagrecimento e a fraqueza eram visíveis e, muitas vezes, chegava a mudar, por completo, a feição das pessoas acometidas.

Como os primeiros casos ocorreram em homossexuais, durante algum tempo, foi chamada de doença ou peste gay. Mas logo em seguida se descobriu a infecção de outros grupos, então adotou-se temporariamente o nome Doença dos 5H, representando os homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos (usuários de heroína injetável) e hookers (denominação em inglês para profissionais do sexo). Quando mulheres começaram a ser diagnosticadas com a doença, as autoridades de saúde perceberam que se tratava de um problema muito mais abrangente.

Em 1983, os cientistas conseguiram identificar o causador da terrível doença: o Vírus da Imunodeficiência Humana ou HIV. Era ele o responsável por causar a Aids, sigla em inglês que definia a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Os estudos também mostraram como o vírus agia: o HIV atacava o sistema imunológico, que é responsável por defender o organismo de doenças. As células mais atingidas são os linfócitos T CD4+. O vírus é capaz de alterar o DNA dessa célula e fazer cópias de si mesmo. Depois de se multiplicar, rompe os linfócitos em busca de outros para continuar a infecção.

Diretor-técnico dos programas de DTS/Aids e hepatites virais da cidade de Anápolis, o médico infectologista Marcelo Daher, lembra que até a década de 1990, a situação provocada pelas contaminações pelo HIV era aterradora.

Sem medicamentos

Com o número de casos crescendo e sem medicamentos eficientes para combater a infecção, a perspectiva das autoridades de saúde era de um cenário de total descontrole na década seguinte: “Com o ritmo das contaminações aumentando, a perspectiva naquela época era de que em 2000 não haveria leitos suficientes para todos os pacientes”, lembra Daher.

A agressividade do vírus, e a inexistência de medicamentos capazes de inibir essa ação, resultava num diagnóstico fatal: estar com HIV era uma sentença de morte e, pior, de uma morte lenta, precedida de muito sofrimento.

Mesmo quem não teve a infelicidade de ter um membro da família, um amigo ou mesmo um conhecido, diagnosticado com a doença, acompanhava a agonia de personalidades conhecidas, ídolos da música, do cinema, da TV, que assumiram a infecção pelo vírus e se expuseram diante do público ou em frente a câmeras, sofrendo com os efeitos devastadores do HIV. No Brasil, o caso do jovem cantor Cazuza foi o mais emblemático. 

O médico Marcelo Daher explica que essa debilidade visível do corpo se dá por vários motivos e varia de paciente para paciente. Segundo ele, a própria ação do HIV no organismo provoca a aceleração do metabolismo, um dos fatores que leva ao emagrecimento. Além disso, os efeitos da ação do vírus, como as diarreias e vômitos e as doenças oportunistas, também podem causar a perda de peso exagerada. E não só emagrecimento, mas são essas doenças, que se aproveitam da baixa imunidade para se estabelecer, que levam ao óbito.  A Aids em si, não causa a morte. 

Ainda na década de 1980, o AZT, uma droga usada para tratar a leucemia, começou a ser utilizada também no combate à Aids, mas logo percebeu-se que o vírus ganhava resistência ao medicamento. As pesquisas apontavam outras opções, mas a eficácia era baixa e os remédios não conseguiam conter as mortes. 

Segundo o especialista, o divisor de águas foi a combinação de drogas, o chamado coquetel antiaids, que conseguiu, finalmente evitar a multiplicação desordenada do vírus e, com isso, barrar o enfraquecimento do sistema imunológico. Pela primeira vez, houve redução nas mortes causadas pela doença e aumento da expectativa de vida dos pacientes. 

Apesar de ter causado uma verdadeira reviravolta no tratamento da Aids, a adesão à terapia ainda enfrentava resistências, especialmente por dois motivos: a grande quantidade de comprimidos a serem ingeridos, entre 20 e 30 diariamente, e os fortes efeitos colaterais, como náuseas, diarreia e tonturas. 

Felizmente, a descoberta desses primeiros medicamentos abriu as portas para a evolução das terapias, que foram ficando cada vez mais eficazes, com redução na quantidade de comprimidos e na frequência das doses e, ainda gerando menos efeitos colaterais. Atualmente, existem medicamentos diversos, com diferentes combinações possíveis para tratar a infecção do HIV, possibilitando que a maioria das pessoas com o vírus tome antirretrovirais de duas ou três drogas em combinações.

Antirretrovirais

Os tratamentos com os antirretrovirais oferecidos hoje provocam a redução da carga viral no organismo, ou seja, a quantidade de vírus no sangue fica tão pequena, que não é possível detectar. E o melhor é que esse processo acontece num período relativamente curto de tempo. Geralmente, com cerca de seis meses após o início do tratamento, o paciente fica com a carga viral indetectável. Além da qualidade de vida do paciente, isso significa que ele não vai transmitir o vírus para outras pessoas. 

Outra excelente notícia é que todo o tratamento antiaids é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E o Brasil é exemplo para o mundo: é um dos poucos países que oferece o antirretroviral gratuitamente, desde 1996. E a partir de 2013, o SUS também garante o tratamento para todas as pessoas com HIV, independentemente da carga viral e da contagem de linfócitos T CD4.

Marcelo Daher aponta ainda outro marco importantíssimo das estratégias de combate e controle da do HIV, que estabeleceu a prevenção à contaminação pelo vírus. São as chamadas Prep, Profilaxia Pré-Exposição ao HIV, e a PEP, Profilaxia Pós-Exposição ao HIV. 

Segundo o infectologista, a Prep é indicada para pessoas que lidam com situações de risco de infecção, sendo que os públicos prioritários são as populações-chave, que concentram o maior número de casos de HIV no país: homossexuais e homens que fazem sexo com homens (HSH); pessoas trans; trabalhadores do sexo e parcerias sorodiferentes (quando uma pessoa está infectada pelo HIV e a outra não).

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Já a  PEP  é voltada para pessoas que tenham tido um possível contato com o vírus HIV em situações como: violência sexual; relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou com rompimento da camisinha), acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou em contato direto com material biológico). É uma terapia que deve ser iniciada logo após a exposição de risco, ou no máximo em até 72 horas após o possível contato e deve ser tomada por 28 dias. 

Para recém-nascidos

Marcelo Daher explica que na PEP, mesmo que o paciente tenha contraído o HIV nessa situação de exposição, os medicamentos vão agir para impedir que o vírus se instale no organismo. “Esses remédios, que são altamente potentes, não evitam que o vírus entre no corpo, mas evitam que ele consiga infectar as células. Ela é usada, inclusive em recém-nascidos, filhos de mães soropositivas, para evitar a chamada transmissão vertical. Depois da adoção da PEP, nós diminuímos de 40% para 1% o índice de transmissão vertical”, comemora. 

Mas de acordo com o infectologista, a estratégia que mais diminuiu o número de infecções tem sido a Profilaxia Pré-Exposição. Porém, até que todos esses avanços acontecessem e as terapias estivessem disponíveis no SUS, milhares de pacientes e suas famílias passaram por um verdadeiro calvário provocado pela Aids. Estima-se que até a década de 90, mais de 30 mil pessoas tenham morrido no mundo por causa da infecção com o HIV. 

A família da jornalista Roseli Tardelli viveu essa situação. Nessa época, em que ainda não havia tratamentos eficazes contra a doença, Sérgio, seu único irmão, foi diagnosticado HIV+. O rapaz tinha apenas 29 anos. Além de enfrentar a dor dos efeitos nefastos da doença, a família teve que encarar uma batalha jurídica para que o plano de saúde do rapaz cobrisse o tratamento. “O SUS já atendia pessoas com Aids, porque os planos de saúde não atendiam? Por preconceito. E para preconceito a gente não se encolhe. Não tinha muito o que fazer na época, mas o que já existia de terapias, era preciso assegurar”, afirma.  

Como era apresentadora de um programa exibido em rede nacional pela TV Cultura, a jornalista conseguiu uma grande repercussão na mídia e na população em geral. Ela acredita que essa luta da família e toda a discussão gerada, teve alguma influência na sanção da lei, ainda na década de 1990, que obrigou as operadoras de saúde a cobrir o tratamento de Aids e de outras doenças preexistentes.  

Para Marcelo Daher, toda a evolução no tratamento e a disponibilidade pelo SUS são louváveis, pois salvam milhares de vidas, mas ele acredita que a forma de atendimento poderia ser melhorada. O sistema de saúde deveria ser mais ativo na busca  dos pacientes, afirma. “Uma luta nossa é para que tenhamos uma estratégia que não espere o paciente vir até o sistema, mas que o sistema esteja mais próximo dele”, ensina.

O médico se refere à descentralização do atendimento. E explica que, atualmente, o paciente com HIV ou a pessoa que busca o PREP ou mesmo um teste de detecção, por exemplo, tem que ir a uma unidade especializada, enquanto o ideal seria que todas as unidades básicas de saúde pudessem oferecer o atendimento.

“No mínimo, o primeiro atendimento deveria ser na rede básica, depois desse primeiro contato, aí sim, ele poderia ser regulado para a unidade especializada. Nós temos que ter mecanismos que facilitem a entrada dele na rede, porque se o acesso é dificultado, a pessoa vai desistir. E se for uma pessoa que ainda não sabe que está doente, aí então, é que ela nem vai”, analisa o médico. 

Outra crítica feita pelo infectologista é com relação à falta de informação. Ele lembra que na década de 1990 havia muitas campanhas educativas em todos os meios de comunicação, o que não se vê mais hoje em dia. Algumas poucas iniciativas são pontuais, como na época do carnaval, em que além de peças publicitárias, são realizadas campanhas “corpo a corpo”, com a distribuição de preservativos. Para o médico, o ideal é que essas ações sejam constantes e não apenas periódicas.

Daher entende ainda que as informações precisam ser deslocadas também para as redes sociais. “É preciso mudar a estratégia de ação e levar essas campanhas para onde o jovem está, contar com os influenciadores digitais, para atingir esse público, que é a faixa etária onde estamos detectando um aumento de casos, principalmente, entre os homens.” 

Desigualdades 

Além das questões levantadas pelo médico, um outro fator, mais amplo, tem ameaçado os esforços para se combater a pandemia do HIV no mundo: as desigualdades entre os países. Já há algum tempo, a OMS vem chamando a atenção para a discrepância dos resultados obtidos pelos países no combate à Aids. E, nesse caso, não entram só as diferenças econômicas, mas também sociais, religiosas, étnicas e de gênero.

Em junho de 2021, dados do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, o Unaids, mostraram que dezenas de países atingiram ou ultrapassaram as metas determinadas na Assembleia Geral das Nações Unidas em 2016, que definiu a erradicação da Aids com uma das metas da Agenda 2030. Para a entidade, isso mostra que as metas, apesar de  ousadas, eram plenamente alcançáveis.

O relatório apontou também que os países com leis e políticas progressistas e sistemas de saúde fortes e inclusivos, têm tido os melhores resultados na resposta ao HIV. Nesses países, as pessoas têm mais probabilidades de ter acesso a serviços de HIV eficazes, incluindo testes de HIV, e o Prep, redução de danos, entre outras medidas. 

Globalmente, o relatório mostrou que o número de pessoas em tratamento mais do que triplicou desde 2010. Em 2020, 27,4 milhões dos 37,6 milhões de pessoas vivendo com o HIV estavam em tratamento, contra apenas 7,8 milhões em 2010. Estima-se que a implementação de um tratamento acessível e de qualidade tenha evitado 16,2 milhões de mortes relacionadas à Aids desde 2001.

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Segundo o relatório, o problema está em países com leis punitivas e que não adotam uma abordagem baseada em direitos relacionadas à saúde. “Esses países ignoram, estigmatizam e deixam as populações-chave, que constituem 62% das novas infecções por HIV, fora do alcance dos serviços de atendimento”, destaca o relatório.

O documento cita como exemplo, os 70 países em todo o mundo, que criminalizam as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Homens gays e outros homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo, pessoas trans, pessoas em privação de liberdade e pessoas que usam drogas injetáveis ficam com pouco ou nenhum acesso a serviços sociais ou de saúde, permitindo que o HIV se propague entre as pessoas mais vulneráveis da sociedade.

Outro exemplo: as mulheres jovens na África subsaariana também continuam a ser deixadas para trás. Seis, em cada sete novas infecções por HIV entre adolescentes entre os 15 e 19 anos na região, encontram-se entre as meninas. As doenças relacionadas à aids continuam a ser a principal causa de morte entre as mulheres entre os 15 e 49 anos na África subsariana. 

Covid-19

No mês seguinte, o Relatório Global do UNAIDS 2021 “Enfrentando Desigualdades – Aprendizados dos 40 anos de AIDS para respostas a pandemias” mostrou que as pessoas que vivem com HIV enfrentam uma ameaça dupla em relação ao HIV e à covid-19. Além disso, o documento informou que estudos da Inglaterra e da África do Sul indicam que a chance de morrer por consequência da covid entre as pessoas que vivem com HIV é o dobro da população em geral.

Na África Subsaariana, onde residem dois terços (67%) das pessoas que vivem com HIV, menos de 3% receberam pelo menos a primeira dose da vacina contra a covid, até julho de 2021.

O relatório também abordou como os lockdowns e outras medidas restritivas de combate à covid-19 interromperam a testagem para HIV. Em muitos países, isso levou a quedas acentuadas nos diagnósticos e encaminhamentos para serviços de cuidados e de início de tratamento de HIV.  Em KwaZulu-Natal, na África do Sul, por exemplo, houve redução de novos diagnósticos de HIV e uma queda acentuada no início do tratamento, na medida em que profissionais de saúde comunitária atuando com HIV foram transferidos do trabalho de testagem de HIV para o rastreamento de sintomas da covid-19.

E agora, pelo Dia Mundial de Luta contra Aids, mais uma vez a Organização se manifestou no relatório “Desiguais. Despreparados. Ameaçados: por que são necessárias ações ousadas para acabar com a Aids, interromper a covid-19 e preparar respostas a futuras pandemias”, onde emitiu um aviso contundente de que se as lideranças mundiais não conseguirem abordar as desigualdades, o mundo poderá enfrentar 7,7 milhões de mortes relacionadas à Aids nos próximos 10 anos.

O Unaids adverte, ainda, que ”se as medidas transformadoras necessárias para acabar com a Aids não forem tomadas, o mundo também ficará preso na crise de covid-19 e permanecerá perigosamente despreparado para as pandemias que estão por vir”. 

Para o médico Marcelo Daher, esses alertas feitos pelo Unaids, precisam ser ouvidos pelas nações, para se fazer um enfrentamento global à doença. “Especialmente os países do Primeiro Mundo precisam enfrentar essa situação. É preciso passar por cima de brigas, de extremismos e construir pontes. Há um longo caminho a ser trilhado”, avalia o especialista. 

Solidariedade 

Se falta cooperação mundial para o combate ao HIV, não faltam iniciativas individuais ou de pequenos grupos, no sentido de acolher, apoiar e enfrentar o vírus e todas os seus efeitos maléficos. A jornalista Roseli Tardelli foi uma das pessoas que transformou o luto, pela perda de um ente querido, em luta na defesa de todos os acometidos de HIV. 

Além da batalha jurídica contra o plano de saúde, a jornalista e produtora cultural também fundou a Agência de Notícias da Aids, uma agência especializada em informações sobre o HIV e outros assuntos relacionados. 

Roseli explica que a ideia partiu da percepção da necessidade de uma agência cotidiana para informar sobre a pauta HIV/Aids. Além da organização da informação, era afirma que era preciso tratar com respeito e empatia as pessoas que vivem com HIV e aids. “Eu penso que a grande contribuição da agência, através de matérias, reportagens, informação foi ajudar a diminuir o estigma e o preconceito contra quem tem HIV e aids.” 

Além de conteúdo jornalístico, a agência promove uma série de ações sociais e culturais. Uma das ações se chama Lá em Casa, um projeto realizado na casa que foi dos pais de Roseli. No local, funciona um centro de convivência para pessoas vivendo com o vírus, onde os assistidos contam com terapias, exercícios físicos, rodas de conversas e mais uma série de iniciativas que promovem a integração dos pacientes. “A grande questão do projeto é poder falar, é furar o silêncio e falar mais de sexualidade e mais de HIV e aids”, arremata Roseli. 

A escolha do 1º de dezembro, como Dia Mundial de Luta Contra a Aids, também foi um ato de solidariedade com as pessoas com HIV, ainda lá atrás, quando não havia muita esperança para os infectados. A decisão foi da Assembleia Mundial de Saúde, em outubro de 1987, com apoio da Organização das Nações Unidas.

A data serve para reforçar a solidariedade, a tolerância, a compaixão e a compreensão com as pessoas que vivem com HIV/Aids. No Brasil, a data passou a ser adotada, a partir de 1988, por uma portaria do Ministério da Saúde. 

O laço vermelho foi adotado como símbolo de solidariedade e de comprometimento na luta contra a doença. O projeto do laço foi criado, em 1991, pela Visual Aids, grupo de profissionais de arte de Nova York (EUA), que queriam homenagear amigos e colegas que haviam morrido ou estavam morrendo de aids. A cor vermelha é uma alusão ao sangue e à ideia de paixão. 

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