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No Dia Mundial da Saúde Mental, especialistas alertam sobre o número cada vez maior de indivíduos com transtornos

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Vanessa Curado tinha 29 anos quando deu à luz ao seu terceiro filho, Roberto. Aos dois anos, a criança, que ainda não falava e nem ganhava autonomia como as outras de sua idade, foi diagnosticada com autismo severo, de grave comprometimento intelectual. “A minha vida virou de cabeça para baixo. Senti medo do futuro porque sabia que ele seria um eterno bebê. Tive que renunciar a mim mesma. Mas, hoje em dia, tenho medo de não ser o que sou”, confessa a mãe. 

Cuidadora em tempo integral, Vanessa se diz resignada à missão que lhe foi confiada. Roberto, hoje já com 26 anos, continua, de fato, dependendo dela para tudo: tomar banho, ir ao banheiro, comer, se vestir, ir ao médico (o que envolve as visitas de rotina ao psiquiatra), administrar seus medicamentos de uso contínuo (sete, no total), frequentar a escola (Roberto estuda na Associação Pestalozzi, em Goiânia). 

A realidade de Vanessa é compartilhada por muitas outras mães, que, como ela, dedicam a vida a cuidar de seus filhos. Estima-se que, atualmente, em média, para cada 60 ou 70 nascimentos, no mundo, um é de uma criança com autismo. O Transtorno do Espectro Autista (TEA) se enquadra na categoria de doenças associadas a problemas ocorridos na fase de neurodesenvolvimento fetal e é apenas uma dentre as várias patologias atualmente indexadas no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). 

O livro, que é considerado “a Bíblia” da psiquiatria e da psicologia, teve a sua última versão publicada em 2013. Nessa, estão listadas outras várias categorias de doenças mentais, que vão muito além de atributos individuais, genéticos ou dos distúrbios neurológicos citados. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), elas incluem fatores sociais, culturais, econômicos, políticos e ambientais. Dentre as patologias mais comuns, estão a ansiedade, a depressão, a esquizofrenia, os transtornos alimentares, o estresse pós-traumático, a somatização, o transtorno bipolar e o transtorno obsessivo-compulsivo. 

O manual faz, inclusive, menção a transtornos bem compatíveis com os tempos atuais, como o de “adicção à internet”. A patologia ocorre quando o uso excessivo da ferramenta passa a prejudicar um ou vários aspectos da vida de seus usuários. Algo do gênero seria impensável quando a primeira versão da obra (DSM-1) foi lançada, em 1952. 

Isso é o que explica a psicóloga e professora, doutora em Ciências da Saúde, Analucy de Oliveira. Ela comenta como foi se dando essa evolução nos diagnósticos e mostra como a própria percepção acerca da saúde mental vai mudando ao longo do tempo. “Sempre são atualizados os conceitos e os nomes dos transtornos. Às vezes, uns são acrescentados e outros retirados. Por exemplo, nessa última versão do DSM, os transgêneros foram retirados da lista de transtornos. Por outro lado, houve esse acréscimo referente à dependência tecnológica”, exemplifica.  

A conscientização sobre o cenário, que tem se agravado ao longo das últimas décadas, afetando, de diferentes formas, um número cada vez maior de indivíduos ao redor do mundo, é foco da luta desse 10 de outubro, data que marca o Dia Mundial da Saúde Mental. De acordo com a OPAS, em países de baixa e média renda, como o Brasil, entre 76% e 85% das pessoas com transtornos mentais não recebem tratamento ou o recebem de forma precária.

Saúde mental e pandemia

A campanha citada, que conta com o apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS) e vem sendo realizada desde 1992, tem se tornado ainda mais urgente nesse contexto de pandemia. Analucy informa que o índice de transtornos mentais que, antes, já afetava algo em torno de 5% da população mundial, cresceu ainda mais nesse último ano. 

Segundo ela, o momento é considerado o de maior prevalência das doenças mentais no Brasil e no mundo. “Os artigos científicos demonstram que o número de pessoas com transtornos de ansiedade e depressão triplicaram desde o início da pandemia. Também houve um aumento significativo no que se refere às ideações suicidas. Esse crescimento se deve, sobretudo, a fatores estressores, decorrentes de mudanças radicais que passaram a ser impostas no estilo de vida das pessoas”, comenta. 

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Isso foi o que acabou acontecendo com a família de Vanessa. Embora o desconforto familiar tenha estado sempre presente e a busca por terapias tenha sido uma constante ao longo dos anos, Vanessa comenta que o mal estar se intensificou com a chegada da crise sanitária do novo coronavírus. Sua filha Renata vem fazendo, desde então, tratamento para depressão e recentemente a própria entrevistada foi diagnosticada com depressão mista. “Estamos isolados, literalmente. Tenho muito medo que o Roberto pegue covid. Ele anda agitado e agressivo por não ter escola. E não entende que estamos numa pandemia, não adianta explicar”, desabafa. 

Cuidar de quem cuida

A experiência vivida pela família de Vanessa é considerada bastante comum em situações que envolvem o convívio e o cuidado de pessoas com deficiência mental. Por isso, para os profissionais da área, nesses casos, é sempre importante que o acolhimento seja direcionado não apenas para o tratamento do doente principal, mas de todos que estão direta e constantemente a ele relacionados. 

Isso porque cuidar de crianças e adultos como Roberto, não é, nem de longe, uma tarefa fácil. O cotidiano das pessoas ao seu redor, se torna por vezes, demasiado desgastante. “O nível de autismo dele é o mais grave. É como se ele tivesse todas as deficiências juntas. Tem problemas com socialização, hipersensibilidade com roupas, comidas, audição, toque. Não tem controle sobre as necessidades diárias. A nossa convivência, em casa, depende das crises dele. Se ele está bem, todos estão bem. Se está em crise é como se estivéssemos numa batalha sem fim. Com o tempo a gente vai se resignando. Eu, particularmente, vivo um dia de cada vez, mas sempre apreensiva com a qualidade de vida dele”, relata Vanessa. 

A preocupação e o trabalho constante acabaram enterrando projetos de uma vida profissional e mais autônoma. Para dar conta dessa rotina exaustiva de cuidados diários, Vanessa se viu obrigada a abandonar, por exemplo, a carreira como pedagoga, onde chegou a atuar por seis anos, e também a abrir mão do sonho de ser advogada. “Poderia deixá-lo com uma cuidadora mas não compensa financeiramente e elas não ficam muito tempo. Queria muito fundar uma associação para as mães de pessoas com deficiência intelectual, para lutar pelos nossos direitos”, comentou.  

Vanessa reivindica, por exemplo, nesse aspecto, o investimento público na construção de clínicas-escolas com terapias alternativas especializadas em atender pessoas autistas e suas famílias. Segundo ela, exemplos como esse, que já se encontram atualmente em funcionamento nos estados do Rio de Janeiro e Ceará, são fundamentais, sobretudo para o atendimento de populações economicamente mais vulneráveis. 

A entrevistada informa, inclusive, ser essa a situação em que se encontram inúmeras mães goianas, que, diferente dela, não contam com a mesma sorte de ter uma condição material minimamente favorável para cuidar de filhos especiais, como o Roberto. “No Pestalozzi, já cheguei a conhecer mães trabalhadoras, moradoras da periferia, que pegam vários ônibus, todos os dias, para levar e buscar seus filhos na escola. Já vi mulheres nessas condições e tendo três crianças com doenças mentais graves para cuidar. Foi o caso de uma jovem que conheci lá. Tinha três filhos deficientes, um deles era esquizofrênico”, informou. 

Pestalozzi

O Instituto Pestalozzi a que Vanessa se refere, é uma entidade filantrópica que atende, a nível nacional e sem limites de idade, pessoas com qualquer deficiência física ou mental. Segundo relatório divulgado, em 2019, a associação afirma ter atendido, de forma direta e indireta, somente em Goiânia, mais de 1,2 mil pessoas e suas famílias. Em junho, desse ano, a entidade recebeu 500 mil reais de emendas parlamentares. A doação foi feita pelo deputado Delegado Humberto Teófilo (PSL), que também beneficiou a Associação Pestalozzi de Inhumas, com emenda orçamentária de R$ 20 mil. 

Cuidar da saúde física, por meio da prática regular de atividades físicas e pelo cultivo de uma boa alimentação são orientações que devem ser, necessariamente, seguidas para manutenção da saúde mental. Mas não somente isso. Para Analucy, buscar auxílio terapêutico antes mesmo da chegada da doença também é uma boa pedida. “É importante que a pessoa faça terapia preventiva, não apenas curativa. Além disso, também é igualmente importante se buscar atividades de relaxamento, como ioga, meditação, mindfulness, assim como qualquer outra atividade que combata o estresse”, recomenda.

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Para o caso de Vanessa, Analucy indica que os cuidados sejam compartilhados com profissionais da área. “O cuidador de qualquer pessoa que tem um transtorno mental grave acaba sofrendo muito. A pessoa da família que assume sozinha essa missão, acaba, inevitavelmente, ficando deprimida. Isso é o que acontece, por exemplo, muito frequentemente, com os cuidadores de idosos com Alzheimer, assim como com cuidadores de crianças que têm autismo. Por isso, é realmente necessário se investir no rodízio de pessoas e profissionais para que nenhum cuidador adoeça junto com a pessoa que está sendo cuidada”, enfatiza.  

Ação parlamentar

O tema da saúde mental é pauta central de seis projetos que entram em tramitação na atual Legislatura da Alego. Dois deles, inclusive, explicitam a suas relações com a pandemia da covid-19 e um, guarda correlação direta com parte dos anseios expressados por Vanessa. Este último é de autoria do deputado Paulo Trabalho (PSL) e tramita sob o processo de número 1993/20. A matéria dispõe sobre a criação de um Centro de Atendimento Multiprofissional Especializado em Saúde Mental, de habilitação e reabilitação infantil no estado de Goiás. 

“Estima-se que, no mundo, uma em cada quatro a cinco crianças e adolescentes tenha algum transtorno mental. No Brasil, onde faltam pesquisas, acredita-se que a incidência varie dos 7% aos 20%. Além disso, entre 50% e 75% dos transtornos mentais surgem até os 18 anos”, justifica o propositor. O processo aguarda atualmente a fase de primeira discussão e votação plenária.    

Sobre a questão específica do autismo, há ainda outros projetos em tramitação. Um deles dispõe sobre a implementação de rede especializada de atendimento às pessoas portadoras do transtorno, com a adoção do modelo clínica-escola, conforme idealizado por Vanessa, no âmbito do estado de Goiás. A matéria tramita sob o processo de número 1631/19 e é de autoria do deputado Talles Barreto (PSDB). Com pareceres favoráveis da CCJ e Comissão de Saúde, a propositura aguarda agora a primeira fase de discussão e votação plenária. 

Veja a seguir a lista com breve descrição das demais matérias em tramitação. 

Proposição 6525/21. Autor: deputado Maycllyn Carreiro. Institui a Política Estadual de Atenção à Saúde Mental dos Familiares de Vítimas da COVID-19. Aguarda apreciação pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJ). 

Proposição 5971/21. Autor: deputado Karlos Cabral (PDT). Obriga planos de saúde a custearem a mamoplastia de aumento para mulheres que passaram por cirurgia bariátrica e tenham indicação médica para a sua realização. O objetivo da norma é resgatar a saúde mental e emocional da mulher, já debilitada pela baixa autoestima gerada pelas alterações anatômicas e morfológicas do corpo humano, consequentes de uma cirurgia bariátrica. Com parecer favorável do deputado Talles Barreto (PSDB), a matéria aguarda devolução de pedido de visto do deputado Bruno Peixoto (MDB), na CCJ.

Proposição 5075/21. Autor: deputado Karlos Cabral (PDT). Institui a Política Estadual de Atenção à Saúde Mental dos Familiares de Vítimas da COVID-19 no Estado de Goiás. Com parecer favorável da CCJ, a matéria aguarda o relatório do deputado Antônio Gomide (PT) na Comissão de Saúde.

Proposição 6568/19. Autor: deputado Paulo Trabalho. Obriga todos os hospitais de emergência do estado de Goiás a manter equipe multidisciplinar especializada em saúde mental para atendimento e acompanhamento dos casos de sofrimento psíquico, em especial as tentativas de suicídio e de pacientes com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras dogras, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Com pareceres favoráveis da CCJ e Comissão de Saúde, a matéria aguarda agora a primeira fase de discussão e votação plenária. 

Proposição 4762/19. Autor: deputado Coronel Adailton. Cria, no âmbito do estado de Goiás, o programa de cuidados, proteção e ações preventivas relacionadas à saúde mental da população. Com pareceres favoráveis da CCJ e Comissão de Saúde, a matéria aguarda agora a primeira fase de discussão e votação plenária. 

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